O despertador sempre tocou às 8h00 da manhã. Banho, troca de roupa, escovada rápida nos cabelos, o barulho da chave rodando na fechadura da porta. Leitura das mensagens de textos no ritmo do busão, cabeça no café da Dona Jô ao chegar na firma. Até o ponto de chegada, devo passar por pelo menos umas 15 pessoas... sempre olho e cumprimento, organicamente. A luz da janela vai mudando aos poucos, hora do almoço...onde vamos comer? Lá vem ela começar a chamar o povo pra comer...rs
Antes de sair,às vezes, lá vão as sobras das águas nas garrafas e canecas caírem nas plantas corporativas.
O cotidiano tranquiliza (e por vezes neutraliza). O café sempre quente. Tá garantido. O humor de Dona Leila, ascensorista, previsivelmente, decola entre seus altos e baixos. Normal. O cenário ordinário, consome junto com os passos, gruda na sola. Desliza. O cotidiano meio que aprisiona, mas, no fundo, é liberdade (sabemos?).
Até... até que um dia...stop.
Suspensão.
(tudo flutuou: mouse, coração, óculos, livros, cabelos, canetas, mãos, copos: tudo cheira álcool)
A gravidade é alta, é zero. Esquisito. O mote do perigo não se enxerga. O coro. Cor. Corona. Mata?
Play. Stop. Play...
Um fragmento, grão do cotidiano classe média. Multiplica por 1 milhão... agora por 3, por 4, com cada particularidade de família (bebê, criança, idoso), classe social: Tudo está no ar. É global. É do sistema. Imuno, lógico! Stop.
Play.
Nas redes. As janelas das casas e apartamentos acesas. Estabelecimentos fechados. Será que eu preciso ficar em casa #ficaemcasa. Aparta mento. O estagiário hoje me contou que usa boné porque o topete cresceu.
Nunca reparei nesse prédio vermelho em frente de casa. Faz tempo que não almoçamos juntas em plena terça-feira as 13h57 tomando a sobra do vinho de domingo com...feijão. Os sinos da igreja avisam do tempo, agora. Vai ter encontro no skype com amigos. Aulas também, reuniões. Supervisões clinicas.
Classe média, a gente se vira por aqui. Eu me viro por aqui. Viro e fico parada vendo a cor do céu mudar, da varanda, entre uns e-mails do home office. Faço uns exercícios na sala. Corro parada, imaginando uma esteira, olhando fixamente no olho mágico da porta. Sabia que os melhores roteiros são os de confinamento? A síntese do tempo e espaço em quatro paredes. O que cabe? Vértices conjugam o tecido nervoso.
Tempo e Espaço. Um meteoro ia cair na Terra. Mas algo bem (bem) menor foi caindo bem em cima dos telhados e alicerces espaço e tempo. Coordenadas do laço social, da história, das narrativas, das trocas, dos negócios, das auto referências...ops....meu aniversário é mês que vem... Hey, estamos todos on? O que importa? O que entra dentro? O que está fora? Quem? Lave as mãos, por favor. O contato é contagioso. Conta outra. Todo ato tem efeitos, entenderam? TODO. Não foi o corona que me contou. E quanto mais gente, pode ser pior ou melhor.
No esmagamento é que se extrai algo. Onde se tirou é que se sabe o que foi tirado. Será? Sinto falta do gosto do café da Dona Jô. Do abraço apertado da Ana. Do olhar esguio da D. Leila. Semana passada estávamos num bar perto do trabalho, apostando o futuro. Busco ficar on. na line do desejo. Grupos de solidariedade. Empatia, agora dá? Lembra: não estamos sós on. In.Out. Um grupo grande de pessoas out sustentam os on in suas casas.
Stop.
Sonhei essa noite que voltava ao escritório e as plantas haviam crescido. Estavam grandes e verdes, retorcidas, tomando conta das baias. Mas... quem as regou com água e saliva? Quem?
Quem é que você quer ser depois do Corona?
Play.
Corro parada, em frente a porta, mirando o olho mágico.
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